18 Março 2020
“Camus nos cede a palavra, convidando-nos ao recolhimento. Quem não sabe ficar sozinho desconhece o que é a verdadeira liberdade. Devemos buscar o outro por anseio de fraternidade, não para fugir de nossos medos. Não se deve lamentar o isolamento imposto pelas autoridades. É uma boa oportunidade para explorar nossa intimidade e buscar um sentido à vida”, escreve Rafael Narbona, escritor e crítico literário, em artigo publicado por El Cultural, 17-03-2020. A tradução é do Cepat.
O que ‘A Peste’, de Albert Camus, nos ensinou? Que as piores epidemias não são biológicas, mas morais. Em situações de crise, vem à luz o pior da sociedade: falta de solidariedade, egoísmo, imaturidade, irracionalidade. Mas também emerge o melhor. Sempre existem pessoas justas que sacrificam seu bem-estar para cuidar dos outros.
Publicado em 1947, ‘A Peste’ tenta ser uma resposta à dor desatada pela Segunda Guerra Mundial. Ambientada em Oran, narra os estragos de uma epidemia que causa centenas de mortes diariamente. A propagação incontrolável da doença levará as autoridades a impor um severo isolamento.
Tudo começa em 16 de abril. Naquele momento, Oran é uma cidade com uma vida frenética. Quase ninguém nota as existências alheias. Seus habitantes carecem de um sentido de comunidade. Não são cidadãos, mas indivíduos que poupam horas de sono para acumular bens. A prosperidade material sempre parece uma meta mais razoável do que a busca pela excelência moral.
A Covid-19 ou coronavírus levou muitos leitores a reler ou ler pela primeira vez ‘A Peste’, buscando recursos para lidar com o longo exílio em casa imposto pelas autoridades de saúde. A doença sempre está aí, mas pensamos que só diz respeito aos outros. Agora é assunto de todos. Nosso sino de vidro quebrou. Não somos invulneráveis.
Oriundo da Argélia francesa, em ‘A Peste’, Camus descreve seu tempo e sua terra natal, mas seu romance transcende seu marco temporal e geográfico, adquirindo a categoria de metáfora universal. Suas reflexões resultam particularmente esclarecedoras nesses dias.
Camus destaca que a irrupção de uma epidemia letal nos faz meditar sobre o tempo. Normalmente, não percebemos sua profundidade, o leque de possibilidades que cada minuto contém. Só há uma maneira de compreender sua carga frutífera: “senti-lo em toda a sua lentidão”. Essa experiência se tornará acessível a todos com a peste, mas a incerteza e o medo transformarão a lentidão em paralisia, estagnação.
O tempo não se adapta a nós. Somos nós que devemos aprender a experimentá-lo em toda a sua plenitude. O tempo é a argila da qual somos feitos. Não podemos permitir que passe em vão, sem produzir frutos. Não é possível voltar atrás. O tempo perdido é irrecuperável. A expectativa da doença e a morte nos coloca diante das questões fundamentais que costumamos evitar ou postergar. Camus pensa que Deus não existe, que a fé é uma expressão de impotência, mas avalia que o ceticismo não nos tornou mais livres. Só nos deixou mais desamparados.
A capacidade de sacrifício do doutor Rieux, protagonista em ‘A Peste’, manifesta que atribuímos uma importância excessiva a nosso eu. A grandeza do ser humano reside em sua capacidade de amar, não em sua ambição pessoal. Não há nada bonito na dor, mas indubitavelmente nos abre os olhos e nos obriga a pensar. Rieux não se acostuma a ver seus pacientes morrerem. Pensa que a respiração de um moribundo é uma objeção irrefutável contra a suposta bondade da vida. A vida é absurda, ilógica. A inteligência do homem apenas o faz mais infeliz, pois mostra que o universo é governado pelo acaso.
Camus admite que, sem a perspectiva do sobrenatural, todas as vitórias do homem são provisórias. A vitória definitiva e total corresponde à morte. Para Rieux, a existência é apenas “uma interminável derrota”. Sua filosofia se reduz a isso. Não é muito, mas é uma convicção vigorosamente respaldada pela miséria física e moral que aflige - em maior ou menor grau - a humanidade.
Camus pensa que o mal e a indiferença são mais abundantes que as boas ações. O homem não é ruim por natureza, mas seu conhecimento das coisas é deficiente. Seus atos mais nefastos vêm da ignorância. É a tese do intelectualismo socrático, que Camus ratifica com uma frase feliz: “não há verdadeira bondade, nem amor verdadeiro, sem toda a clarividência possível”.
O que é ético em meio a uma epidemia? Lutar com “honestidade”. Lutar pelo homem, apesar de todas as suas imperfeições. Nessa batalha, o fanatismo ideológico só atrapalha. É preciso olhar além, pensando apenas no humano. Como a peste será lembrada quando passar? Talvez como uma fogueira brutal e interminável? Não, muito mais como “um ininterrupto pisoteamento que esmaga tudo em seu caminho”. O ser humano evocará esses dias com tremor, recordando a fragilidade da vida. A peste produz horror, mas também tédio.
Após os sentimentos iniciais de terror ou coragem, de indignidade ou heroísmo, uma emoção unânime de monotonia se espalha. “Ao grande e furioso impulso das primeiras semanas, havia ocorrido um declínio que seria errôneo tomar como resignação, mas que não deixava de ser uma espécie de consentimento provisório”.
A sensação de fatalidade, de estar nas mãos de uma calamidade sem fim, ofusca a sensibilidade. O humano retrocede, o espírito adormece, o biológico usurpa o lugar do racional. A monotonia se apodera de tudo, achatando os afetos e a capacidade de raciocinar: “A cidade estava cheia de adormecidos despertos que não escapavam realmente de seu destino, a não ser nessas poucas vezes em que, à noite, sua ferida, aparentemente fechada, se abria”.
A peste acaba aniquilando os valores. A humanidade se desliza em direção ao nível de consciência de um gado no matadouro, que intui o seu fim sem reagir. As epidemias matam o corpo e a alma. O coronavírus está nos recordando a importância do contato físico. O ser humano precisa tocar seus semelhantes, sentir sua proximidade. “Os homens não podem ficar sem os homens”, escreve Camus. Curiosamente, essa necessidade às vezes só se torna visível quando uma catástrofe se propaga. “O único meio de fazer com que as pessoas estejam umas com as outras é lhes enviar a peste”.
No Ocidente, a crise da família fez com que cada vez existam mais pessoas isoladas. Nos grandes espaços urbanos, os indivíduos se isolam em apartamentos minúsculos e só se cumprimentam nas áreas comuns. As cidades crescem no mesmo ritmo que a solidão.
Para Camus, o sofrimento das crianças é particularmente insuportável. Quando o doutor Rieux e seu amigo Tarrou acompanham uma criança em sua agonia, sua tolerância à frustração transborda, transformando-se em protesto furioso: “Já tinham visto outras crianças morrerem, uma vez que os horrores daqueles meses não tinham sido detidos de forma alguma, mas nunca tinham acompanhado seus sofrimentos, minuto após minuto, como estavam fazendo desde o amanhecer. E, sem dúvida, a dor infligida àquele inocente nunca deixou de lhes parecer o que realmente era: um escândalo”.
O padre Paneloux se mostra compreensivo: “Isso revolta porque ultrapassa a nossa medida. Mas é possível que devamos amar o que não podemos compreender”. O doutor Rieux não aceita esse raciocínio: “Eu tenho outra ideia de amor e estou disposto a me recusar a amar, até a morte, esta criação onde as crianças são torturadas”. Admite que não conhece a graça divina e quando o sacerdote lhe diz que luta pelo homem, responde que só luta pela saúde.
Assim como Dostoievski, Camus avalia que “não há nada sobre a terra mais importante que o sofrimento de uma criança” e “uma eternidade de bem-aventurança” não pode compensar essa dor. O padre Paneloux objeta que “o sofrimento das crianças é nosso pão amargo, mas sem esse pão nossas almas pereceriam de fome espiritual”. Tarrou aponta que a dor dos inocentes nos apresenta um desafio: a possibilidade de alcançar a santidade. Amando, acompanhando, cuidando, sacrificando o nosso bem-estar para que outros vivam. Rieux responde que não está interessado em ser um santo, nem herói. Só quer ser homem e ser solidário com os vencidos. Pela peste ou pela história.
A peste avança e ninguém mais se atreve a falar de Deus. Permanece uma esperança tíbia e insuficiente que é apenas obstinação por viver. Camus conclui que “tudo o que o homem pode ganhar no jogo da peste e da vida é o conhecimento e a memória”. No entanto, não se pode viver só do que se sabe e se recorda. Se não esperamos nada, se percebemos a morte como um limite intransponível, existir se torna uma fadigosa corrida em direção a nada. Todos somos Sísifo, subindo uma penosa ladeira para nos precipitar no vazio.
Só a ternura, o afeto que surge entre os humanos, tristes criaturas que aprendem a contar as horas, sabendo que cada minuto é um passo em direção ao abismo, pode nos aliviar. Todos os homens são irmãos no sofrimento, em uma desventura que não pode ser aplacada. Camus, um humanista sem um pingo de cinismo, não condena seus semelhantes: “há nos homens mais coisas dignas de admiração do que de desprezo”.
Os espíritos verdadeiramente grandes nos colocam no limiar das interrogações. Não nos oferecem respostas. Estimulam-nos a que - a partir de nossa solidão - pensemos e recorramos nosso próprio caminho. Camus nos cede a palavra, convidando-nos ao recolhimento. Quem não sabe ficar sozinho desconhece o que é a verdadeira liberdade. Devemos buscar o outro por anseio de fraternidade, não para fugir de nossos medos. Não se deve lamentar o isolamento imposto pelas autoridades. É uma boa oportunidade para explorar nossa intimidade e buscar um sentido à vida.
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‘A Peste’: Albert Camus em tempos de coronavírus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU